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34km de Sicó

Este ano foi menos, foram só 34 quilómetros (a pé) no Ultra Trail de Sicó (111km).

Inscrito há meses na prova, reservando o número de dorsal de 2015, fui contactado uma noite pelo Gonçalo, dizendo-me qualquer coisa como “Olha lá, vais a Sicó este ano? E se eu fôr contigo?”. Desafiámos também o Bruno a alinha na aventura e treinámos o possível até ao dia e combinámos ir juntos na prova.

Partilhámos receios, dicas, sugestões, corremos juntos sempre que possível, separados quando não. Chegou o dia da viagem. O Bruno apanhou-me, apanhámos o Gonçalo e depois o Juca, que se juntou à comitiva. Pelo caminho, conversámos ligeiro de experiências passadas e expectativas futuras, sempre com o peso dos anúncios de “mau tempo” previstos para todo o país.

A caminho de Sicó
A caminho de Sicó

 

Chegados a Condeixa-a-Nova, fomos imediatamente para o Pavilhão, onde pensávamos que iriamos pernoitar mas, contra-tempo, o pavilhão estava ocupado, a estadia seria na Piscina Municipal. Contra-tempo. Chegados à piscina, a sala ao dispôr minúscula. Escura. Cheia. Cá fora, no corredor, a azáfama do entra e sai dos frequentadores da piscina e aquele habitual calor abafado que as piscinas exalam. Não dava para descansar, para comer, para equipar, nem sequer para falar. Ficámos desconcertados e um pouco desorientados.

Deixámos colchões, saimos a levantar os kits de participante. Mesmo em frente uma residencial, e outra mais ao lado. Após duras negociações, optámos pela “Residêncial Borges”, um golpe nos planos e na carteira mas, para uma prova desta envergadura (pelo menos para mim) não dava para encarar a base de operações de ânimo leve e assim asegurámos um porto seguro.

Com o DJ
Com o DJ

 

Após o jantar, de noodles feitos na “cozinha portátil”, um Facetime com as Ronhonhós e hora e meia de meditação passiva, equipar e sair. A chuva caia, ora mais forte, ora mais fraca. Do aguaceiro à bátega ia alternando antes da partida. Encontro com amigas e amigos, fotografia com o Joe #1, DJ e cantora tentam aquecer uma noite que se adivinhava gelada, batem as zero horas e com os auxiliares de navegação a postos arrancamos para a Serra.

Cábulas plastificadas
Cábulas plastificadas

 

Passagem por Conímbriga, cuspidores de fogo, água, chuva, poças de lama, poças de água, um túnel com água acima do joelho com uma corrente que teimava em fazer-nos cair para trás, o primeiro abastecimento. Com bifanas, sumos, queijos, o que se quisesse. Saímos dez minutos depois. O plano era parar em todos e comer como deve de ser. Naquelas condições, não ingerir calorias era “a morte do artista” e tínhamos muito tempo e muito quilómetro para gerir tudo como deve de ser.

Fomos progredindo conforme possível. Andávamos nas subidas, corriamos a direito, geriamos o esforço nas descidas. Novo abastecimento, atletas a sairem de prova, em hipotermia já ou perto dela. Saí também e, gelei… Foi complicado gerir aqueles seis quilómetros completamente gelado, e só aqueci quando cheguei ao próximo abastecimento que era, ao ar livre. Embora tivesse umas fogueiras para ajudar a aquecer, não chegava, não chegou.

Daí para a frente a chuva transformou-se em granizo quando soprava vento, em neve quando não soprava, ora granizo, ora neve, ora chuva. Eu gelado, chamei o Bruno, o meu wingman à parte. Conversa simples.

“Pá, ’tá tudo lixado com F’. Estou cheio de frio de novo, vai custar a aquecer, se não fôr impossível. Tenho as luvas ensopadas, as mãos quase não as sinto e não vou aguentar mais um choque térmico a sair do abastecimento, que ainda me dá um badagaio, fico no próximo, para mim acabou a prova”. Senti o silêncio e o pesar dele e finalizei com um “e não há nada que digas que me faça mudar de ideias, prefiro sair já que estou bem, do que sair mal mais tarde.”, isto porque já conheço o Bruno, a sua força e o seu espírito, e sei que ele iria fazer tudo ao seu alcance, e usar todos os argumentos possíveis e imaginários para eu continuar em prova.

Chegados então a Casas Novas, quando entramos na casa nova (que parecia ser, ou ter sido uma escola), o panorama era desolador. Sítio apertado, tudo sujo, uma salamandra no canto tentava aquecer alguns participantes com ar de mortos-vivos. Roupa suja e usada espalhada por todo o lado. Nas cadeiras a desolação. Enquanto uns comiam sopa, outros apáticos começavam a tremer. Os bombeiros não tinham mãos a medir a ajudar a tirar e pôr luvas, e a reforçar luvas com outras luvas por cima, tentando proteger da água o que já estava ensopado.

Fiquei-me por lá, com o Rui e a Manuela, os companheiros de viagem seguiram. Fui levado para Condeixa de carro e cheguei pelo meu próprio pé à residencial, contente e triste ao mesmo tempo. Contente por ter “saído” a tempo, triste por ter “saído” tão cedo. É sempre uma balança, tentar perceber até onde podemos e queremos ir, não é fácil mas sei que fiz o melhor.

Já no apartamento, as meias, intactas
Já no apartamento, as meias, intactas

 

Tomei banho, descansei quatro horas, levantei-me e vesti-me, fui ter com a Emília, Marina, Maria, Rui e Manuela ali à Churrasqueira ao lado, bebi um café e arrancámos em excursão a ter com os companheiros que continuavam em prova.

Apanhámo-los em Poios a jogar matraquilhos, até parece que tinham acabado de acordar, e que não tinha passado por mais um nevão na Serra de Sicó, fresquinhos fresquinhos.

A jogar matraquilhos em Poios
A jogar matraquilhos em Poios

 

Daí para a frente o jogo foi sempre esse. Ir para o próximo abastecimento (de carro) e esperar por eles, ajudando no que fosse necessário e possível. Nas condições em questão, qualquer pequena ajuda conta, e fiz o que pude sempre a torcer pelos amigos, incluindo o Nuno, o Fernando e a Virgínia. No entretanto, chegavam a Condeixa-a-Nova outras amigas e amigos para as provas do dia seguinte, a Vanda, a Mafalda, o Ricardo, a Crew Ameixial, o João, e ia comunicando com eles a cada passagem do grupo por nós, tentando controlar a sua ansiedade devido aos relatos de inúmeras desistências.

No Casmilo (km 93) a cozinha era exterior
No Casmilo (km 93) a cozinha era exterior

 

Caiu a noite e a progressão era cada vez mais lenta, é claro. O cansaço, o frio, os aguaceiros que iam e vinham começavam a fazer a sua mossa e confesso que na altura do Casmilo comecei a ficar preocupado com um dos amigos que continuavam em prova, embora não o tenha exteriorizado, eles precisavam de bóias e não de âncoras.

No Zambujal (km 100) a Marina e a Emília vêm a transmissão da prova em directo
No Zambujal (km 100) a Marina e a Emília vêm a transmissão da prova em directo

 

Fui então, já somente com a Emilia e a Marina, para o Zambujal, no quilómetro 100. Sabia que a partir dali a empreitada ia complicar ainda mais. Eles comeram, beberam e mentalizaram-se que estava quase a acabar.

Com a Emília e a Marina, já em Condeixa-a-Nova
Com a Emília e a Marina, já em Condeixa-a-Nova

 

Quando arrancaram, arrancámos também com a promessa de um “até já” e fomos para Condeixa-a-Nova juntar-nos à comitiva que esperava os pré-finishers.

A comitiva na meta espera os atletas dos 111km
A comitiva na meta espera os atletas dos 111km

 

A três minutos do tempo final, lá vêm eles, a arrastar-se “como Deus sabe”, uns mais frescos, uns mais “podres”. Gritámos o que conseguimos e puxamos para darem tudo por tudo. O tempo limite da prova eram 26 horas, conseguiram chegar em 25h58, parabéns campeões.

Atrás deles, um casal e o vassoura João, que chegaram vinte e poucos minutos depois.

Debandámos para a Residencial os que lá estavam, e para os seus aposentos outros porque afinal de contas, tinham as suas provas no dia a seguir, e de todos os que ali estavam os únicos folgados éramos eu, a Emília e a Marina.

O dia seguinte

Acordei cedo e fui para a partida, juntar-me às caras da noite anterior e às caras novas que entretanto chegaram. Quanto aos “outros três”, não os acordei, eles pediram mas não atendi ao seu pedido, precisavam descansar e assim foi.

Participantes dos 50 quilómetros
Participantes dos 50 quilómetros

 

Vi a partida dos 50 quilómetros e a partida dos 25 quilómetros. Estive com mais amigas e amigos, a sentir o ambiente e a pensar que tinha tudo o que era necessário para fazer uma das provas mas, a minha prova tinha sido ontem, estava bem assim.

Retrato de família
Retrato de família de manhã

 

Quando os cento e onze quilometristas apareceram, lá arrumámos os quartos e saímos para apoiar os atletas da prova dos cinquenta quilómetros. Ainda deu para visitar dois abastecimentos, tirar algumas fotografias, e para debicarmos mais fruta, pão, queijo e sopas disponíveis enquanto íamos cirandando à espera deles.

A cábula em acção
A cábula dos 50km em acção

 

Depois do último abastecimento, onde deixámos a Mafalda, Vanda, João e Ricardo com uma escada para os ajudar na última subida, lá rumámos de volta a casa, desmoendo a aventura e pensando já na próxima.

A partir daqui é a subir, leva a escada
A partir daqui é a subir, leva a escada

 

Ir a este Trail de Sicó, é sempre uma experiência encantadora. Este ano ficou, para mim, “manchado” pela questão do pavilhão para a dormida não ter as condições que esperava mas, é com certeza uma experiência a repetir, e talvez já no ano que vem, com certeza que o Fernando e a restante organização terão isso em conta.

Ficam entretanto os agradecimentos à RUNSOX.eu pelo apoio e confiança dada, e aos Só+1km por estarem lá sempre que é preciso. Fica também a galeria de imagens que consegui captar durante a aventura e, mais abaixo, o vídeo possível dos Só+1km. Tendo em conta a tempestade, só pôr a câmara a gravar era uma aventura só por si.

 

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