V Ultra Trail de Sesimbra

V Ultra Trail de Sesimbra

De Sesimbra ao Meco e voltar, com uma história pelo meio para contar.

O amanhecer

Quando o relógio tocou às cinco horas, o primeiro gesto foi desligá-lo. O segundo foi levantar-me, não que a intenção fosse essa mas o que está feito, feito está. Não fosse a combinação de boleia combinada e conjugada com a Ana Monteiro e o Luís Canhão, eu não me tinha levantado não.

A chuva continuava a cair desde o dia anterior, e as somente quatro horas dormidas não me davam a coragem suficiente para me confrontar aqueles 60 quilómetros que me esperavam em Sesimbra.

Coragens à parte, lavei-me, equipei-me, bebi o café do costume e saí de casa debaixo de um aguaceiro ligeiro. A Ana apanhou-me, o Luís apanhou-nos e a viagem até Sesimbra foi sem história. O Luís, repetente no percurso, deu algumas dicas e, num instante, chegámos.

As habituais selfies (sem suor ainda), os cumprimentos aos amigos e conhecidos, o briefing da organização e a partida.

Zumba vs quilómetro vertical

A moda agora, em algumas provas, é um aquecimento “zumba”. Ali em Sesimbra, o aquecimento foi um quilómetro vertical, ou algo assim parecido. Arrancámos em pelotão compacto, a rolar a menos de 5’30” na zona onde me encontrava, e a subir a pique pela direita. Cerca de 900 metros depois, tudo parado. “Está bonito” pensei eu, já tinha os intestinos a trabalhar, já procurava uma árvore ou um abrigo e de repente está tudo em fila indiana parado…

Eu a pensar que não iam haver engarrafamentos ali e afinal, estávamos errados, todos errados. As fitas eram enganadoras, e o percurso era pela esquerda. Voltamos ao ponto inicial, pedidos de desculpa feitos e meia hora depois é dada segunda partida. Gostei do aquecimento, bem melhor do que “zumba”, admito.

A primeira parede

Pela beira mar, vamos correndo e eu, continuava à procura das tais árvores. Quando encontrei as primeiras, não hesitei e parei logo ali, arranquei de novo e já ia sozinho e, eis que aparece a primeira “parede”.

Coisa pouca, era só descer até lá abaixo e subir até lá acima. Do outro lado do vale, o “vassoura” parado. Chama-me, ao longe, e pergunta se estou na prova, respondo que sim e espera por mim. Logo aqui, a primeira queda, inofensiva, mas uma queda, sem arranhões, só sujidade.

Chegado à parede, breve conversa com o “vassoura”, apresentações feitas, digo-lhe que estou bem mas que, provavelmente quando chegarmos à placa divisória das distâncias, virarei para a curta. Arranquei, deixei-o para trás com outro participante. Subi “fácil” mas, com um tornozelo a doer-me, ia “a medo”, já há dias.

Na parede, ainda a subir, começam a aparecer os primeiros participantes da prova curta. A organização deu a nossa nova partida 30 minutos depois da hora prevista mas manteve a hora da partida do percurso curto intacta (que seria 60 minutos depois da nossa) ou seja, trinta minutos depois. Isso afectou-me um bocado, claro, sabia que estava abaixo da cadência que previa, eram tantos factores já a correr mal que, bem, já veria como era, ainda era cedo.

Passagem no primeiro abastecimento, e seguir, seguir até às placas de separação dos percursos.

Na separação dos percursos

Chegado às placas, o Ico (e outra pessoa cujo nome não me recordo). Paragem, fotografia, dois dedos de conversa “acho que vou para a curta”, “não vais nada, vais à longa que eu não deixo ires para curta”, “é pá, não sei se deva”, “vai à longa, vá lá mas tu é que sabes”.

Sabia que o tornozelo me ia estar a chatear até ao fim, iam ser 60 quilómetros (ou mais) em arribas, areia e pinhal. Ia com a cadência prevista de entre 9′ e 10′ por quilómetro, estava nos 10’/km já e sabia, pela experiência, que a mesma ia baixar ao longo da prova, embora até aos 13′ por quilómetro chegasse dentro do “tempo limite” mas levasse uma “grande seca” a fazer o percurso

Fiz umas contas rápidas e virei à esquerda. Deixei recado para o Edmundo (o “vassoura”) que tinha virado para esse lado e arranquei, ainda a fazer contas à vida.

Pelas arribas e pela areia

Entre chuva e nevoeiro fui andando pelas arribas, sempre a lembrar-me do porquê de não ir aos treinos costumeiros do litoral de Sintra onde é essa a especialidade, arribas.

As vertigens assistem-me, bem como o medo de cair a descer… Então, nas descidas o grupo de trás aproximava-se, a direito e nas subidas, eu fugia. Na realidade, ia em competição directa comigo próprio e já tinha percebido que, se não chegasse em último, chegaria lá perto.

A vista e o local, fantásticos. A vegetação rasteira fazia-me pensar que, se estivesse sol iria ser um autêntico braseiro, e o mar que batia na rocha gerava um efeito épico que me fazia lembrar os livros de “Os Cinco”. Passagem pelo Cabo Espichel e começa a areia, já com o Meco à vista. Os sapatos, decidem reformar-se de vez e, o rasgão enorme na cobertura do esquerdo faz com que, cada passo na areia encha o dito cujo da mesma, nada confortável mesmo.

Entre a canja e a febra

Na chegada ao Meco, canja no abastecimento. Quando era pequeno nunca a comia mas de há uns anos para cá aprendi a gostar dela e aceitei prontamente uma dose servida de um panelão gigante. Só houve um pormenor, não haviam colheres. Não sei se algum dos leitores já tentou comer uma canja cheia de massa sem colher, pois, eu que por vezes levo o Spork comigo desta vez não levei, foi a única vez até agora que precisei dele, voltará ao kit. De surpresa, aparece a Ana Silva, em passeio por lá, engraçado como o Mundo é pequeno.

Arranquei para o próximo abastecimento, onde o grelhador das febras trabalhava vivamente. Cerveja branca e preta, vinho branco e tinto, coca-cola, guaraná, água, isotónico, febras, pão, batatas, tomate, laranja, sal, as iguarias habituais que a organização de “O Mundo da Corrida” costuma apresentar.

Comi meia bifana, bebi 33cl de isotónico e arranquei. O grupo de trás já estava todo reunido e eu continuava em corrida comigo mesmo.

A travessia do deserto

No início da travessia enviei uma mensagem à minha Mãe, a desejar-lhe um bom dia, e a dizer onde estava, falávamos mais logo. Nesta segunda metade do percurso, já dava para correr. As arribas tinham ficado para trás e os estradões de terra batida começavam a aparecer mas, o tornozelo lembrava constantemente da sua presença, e o cansaço começava a pregar as suas partidas. O ritmo esse, como previsto, baixava é claro, sendo que a diferença entre a minha posição e a de quem vinha atrás de mim reduzia cada vez mais.

Em momento algum tive pena de mim próprio, nem me arrependi de há umas horas atrás ter virado à esquerda. Estava ali porque queria, conhecia toda a gente que ia naquele grupo e tinha atrás de mim um “vassoura” forte que dava segurança e inspirava confiança. Corria quando podia, e sempre que podia, não entrei em modo “Walking Dead” e disse bastantes palavrões, mesmo bastantes, confesso, preparado estou mas, há dias não, é assim, a Montanha, a Serra, são assim.

Subida e descida ao Castelo

Chegamos então ao último obstáculo do dia, a subida ao Castelo e à Serra seguinte, onde estaria então a descida final. Na subida, já ia perto da Analice, ou ela de mim, depende do ponto de vista, bem como um residente de Sesimbra que, ao estar o dia todo a ver atletas a passar, decidiu juntar-se a nós na subida.

Subimos, subimos, subimos, abastecimento, subimos outra vez e começamos “finalmente” a descer. Digo “finalmente” pois naquela altura, já estava tudo massacrado, tornozelos, joelhos cabeça, e esperava-nos uma longa descida de pedra.

A Analice entretanto, partilha o seu receio comigo, de chegarmos de dia ou não. Digo-lhe que tenho um frontal (não a acalmo pois calma tem ela) que dá para todos os que estamos ali, e que vamos chegar bem a tempo, que 40 minutos no máximo estamos lá em baixo. Ela diz que tem um com as pilhas fracas e que o Edmundo e “o outro rapaz lá atrás não tem” e descanso-a, tenho frontal, e pilhas, se fôr preciso cedo o meu a quem vem atras´.

Vamos descendo, devagar, a Ana e o Luís aparecem bem como o Ricardo. O Luís Parro e o Edmundo vão aparecendo e desaparecendo, e lá chegamos finalmente ao ponto do quilómetro vertical da manhã.

Chegados ao alcatrão, começamos a acelerar e aí questiono-me. Paro, e digo aos outros participantes para pararem, para esperarmos pelo Luís Parro e o Edmundo? Deixo-me ir? Ultrapasso-os? Que estava com força para isso, ou não, não sei, ao fim de 11 horas e tal de pedras e areia já não sei nada muito bem. Vou-me deixando levar até passar a meta em conjunto com todos, atrás deles, mas à frente dos dois referidos anteriormente.

As chegadas

Colocam-me uma medalha ao pescoço, dão-me os parabéns, tiramos fotografias e espero, em silêncio e sem grande festa por eles, realmente confuso se devia ter esperado ou não.

Por um lado acho que não, o momento seria deles mas por outro lado o “Espírito do Trail” é aquela coisa, embora tivesse ido com o objetivo de ir sozinho na prova (sempre a cruzar-me com membros deste grupo das “dores atrozes” é claro), não sei, não sei.

Chegados todos, abraços, selfies suadas, comida e bebida ao dispôr, sandes, fruta, sumos, cervejas, conversas, isto e aquilo do habitual. Despedi-me de todos os presentes na chegada e pusemo-nos a caminho de carro em sentido inverso, agora com uma passageira extra para deixar em Lisboa.

Já em casa, a celebração final do dia da Mãe, embora sem grande fogo de artifício e um tanto ou quanto mal-cheiroso. Cheguei ao fim desta prova aguentando aquelas horas todas por causa da Super-Mãe que “temos” lá em casa.

Sim a super-Mãe Elsa, a minha companheira e Mãe da nossa Sara, a quem a medalha e a travessia foram dedicadas, devido a todo o esforço e empenho que põe na nossa família e lar, e que permite que eu possa estar 11h49 a ir de Sesimbra ao Meco e voltar, com uma história pelo meio para contar.

Algumas imagens do dia

Tentando captar a beleza cénica e alguns dos melhores momentos.

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