UTSM2016

UTSM 2016, 100km corridos a Nestum

Com inscrição feita a 31 de Dezembro de 2015, no primeiro dia possível, este Ultra Trail de São Mamede iria ser a terceira prova de três dígitos a que me ia propôr. Sicó 2015 já tinha passado, Sicó 2016 vinha a caminho, e a primeira viagem a Portalegre para testar o terreno (pós inscrição), embora curta, deu para perceber o que me esperava.

As semanas foram passando, sem grande histeria na preparação. As más condições climatéricas de Sicó em 2016 e a consequente desistência não me fizeram desanimar. Fui progredindo nos treinos, de uma forma coerente e consistente, sem plano traçado por especialistas, mas escutando o corpo e especialmente respeitando o descanso e olhando o desafio com humildade.

A animação online à volta da prova começa a avolumar-se, e quando a organização divulga os abastecimentos e o que está constante neles, há algo que me salta à vista, o leite. Havia uma questão com o leite, não dizia qual o PAC onde estaria. “Meti-me com eles“, responderam com humor, pedi Nestum, com mel, foi prometido.

A viagem

Com tudo preparado a tempo, férias no trabalho marcadas para descansar na manhã de sexta-feira. Saí depois de almoço com a Emília, Marina e Paula, que iam participar na prova curta do dia seguinte às 17h00. A “minha” arrancava às 00h00 de Sexta para Sábado, em conjunto com a de 60 quilómetros.

Chegados a Portalegre, levantamento dos dorsais e kit de participante e, a cerimónia simbólica de recepção de duas embalagens de Nestum com mel, entregues pelas mãos do director da prova João Carlos Correia.

Com o João Carlos Correia, Director da Prova, a receber o prometido Nestum
Com o João Carlos Correia, Director da Prova, a receber o prometido Nestum

Ida à Residencial onde as senhoras iriam ficar e saída para um jantar rápido e leve, voltando à base para uma conference call com as Ronhonhós, que estavam em Lisboa.

Equipar, ver e rever tudo, equipamento de prova e de substituição no Marvão, e saida para o recinto de partida, tranquilo, tudo tranquilo, em silêncio, metido comigo mesmo.

Chegados lá, caras conhecidas, amigas e amigos. Uns para participar nas duas distâncias maiores, outros para o dia a seguir, e outros ainda só a apoiar e fotografar. A temperatura amena e o céu descoberto faziam antever uma noite serena na Serra Fria.

A partida, ainda vazia
A partida, ainda vazia

Após o controle zero (uma mera formalidade, pareceu-me), fiquei dentro do corredor de partida, sendo dos primeiros a estar presente, e vendo o avolumar de participantes. Enquanto uns entravam pelo fundo, o sítio correcto para o fazer, outros entravam pela frente, não respeitando a ordem natural da fila, o habitual.

Para as duas distâncias que arrancariam à noite, fomos cerca de 350 participantes em cada, saindo todos em conjunto quando soaram as badaladas da meia noite.

De Portalegre às Antenas

Arrancámos, compactos. O terreno ligeiramente enlameado. Algum gado à solta pelo caminho, luzes a perder de vista monte fora.

Uma hora depois, engarrafamento. Havia um rio ou ribeira ou curso de água para atravessar e foram necessários 20 minutos para o fazer, tal era o trânsito. Nem era nada de muito complexo mas (e isto é só uma opinião pessoal) o número de participantes equipado com bastões sem estar devidamente habituado a utilizá-los fez aquilo entupir tudo. Nesta parte, enquanto parados no trânsito, também alguns atletas vindos de trás “passaram por cima” dos que já estavam parados na fila, talvez o pódio esperasse por eles, não sei.

Depois de uma queda ligeiramente aparatosa dentro de água, onde me molhei até acima da cintura e o rio me ia levando até Barrancos, segui sempre a bom ritmo, em direcção ao primeiro objectivo da prova, PAC3, no quilómetro 30 com o limite de 07h00 de prova, onde havia o esperado Nestum.

No PAC2, Alegrete, a Emília e a Alejandra tinham ido apoiar os amigos, falei com elas por breves instantes e segui, rápido, pois a pior subida do percurso vinha aí.

Duas horas e meia foi o que demorei para fazer aqueles 18 quilómetros que separavam esses dois pontos. A subida, onde em algumas partes fui praticamente de gatas, foi feita sempre a controlar o esforço, sem ter de parar para recuperar por falta de fôlego ou força, correndo nos planaltos e andando vigoroso no resto do percurso.

Incansáveis voluntários, até o Nestum nos preparavam

 

Cheguei ao almejado Nestum (um dos meus alimentos preferidos, confesso) com 5h27 de prova decorridos e ainda de noite, portanto a 1h33 do limite de tempo máximo de passagem naquele ponto, e dentro da cadência que havia definido para aquele segmento.

Das Antenas ao Marvão

Saído das Antenas, descida, rápida. O dia começava a nascer e a paisagem a esmagar-me, o melhor era não olhar muito para ela para não me distrair. Ia ultrapassando e sendo ultrapassado, maioritariamente por atletas dos 60km, pese embora por alguns dos 100km que aproveitavam a descida. Nesta altura ainda haviam participantes de ambas as provas a correr. A técnica, sempre a mesma. Sem mimimi’s, nem autocomiseração, nem medo, com focagem. Estava ali para correr, com um objectivo bem definido, sabia que tinha tudo o que era preciso para o cumprir portanto, seguir em frente.

Dia nascido, retirado o impermeável, gorro, luvas e camisola superior, fui ultrapassando e sendo ultrapassado aos poucos, comi uma canja, uma bifana, comi fruta, bebi coca-cola e água, sempre água.

A subida para o Marvão, a segunda mais complicada do percurso, feita mais devagar que a das Antenas. Já estava a ficar “calorzinho” e tinha de ir com mais cuidado. Um salto, por cima de um muro, um ligeiro entorce, parei. Palavrões, suei, respirei e recuperei rápido, segui. Cheguei lá acima, ao Marvão treze minutos antes do tempo definido para mim próprio, e duas horas e treze antes do tempo limite de passagem, mais do que a tempo, valeu o esforço.

Fui cumprimentar quem encontrei que já tinha terminado a prova dos 60km e esperava a camioneta e comi, duas sopas de legumes. Bebi mais cola e mais água. Neste ponto, havia um saco de roupa, podíamos mudar o que quiséssemos mas, não vale a pena arranjar o que não está estragado. Então, optei só por deixar a camisola externa e prender uma nova à mochila (acabei por não a usar, podia ter deixado isso e o impermeável mas, nunca fiando), ficando com tudo o resto como tinha antes.

Do Marvão a Castelo de Vide

Saída a descer, em calçada romana. Está bonito… A acelerar claro está, comecei a ultrapassar participantes dos 100km pois todos os outros da “prova menor” ficavam no Marvão. O percurso aqui, confesso que já achei mais fraco. Tínhamos saído da Serra, e passámos por muitos baldios, terrenos agrícolas, mais baldios com entulho, alguma construção desordenada e abandonada, nada de muito acrescento visual até chegar ao sopé de Castelo de Vide.

Para o Castelo, a subir, claro está. Parecia um Vai tudo abaixo, de cada vez que subia, virava para um lado, descia e subia de novo. Chegada ao PAC às 15h00, duas horas antes da partida da prova dos 25km. O meu objectivo era esse mesmo, bateu certinho todo o cálculo e gestão até essa altura.

Por lá, a Emília, Marina, Paula, Manuela, Bernardete, Virgínia, Helena e os seus pequenos e, desculpem se não me lembro de mais caras mas o cansaço, embora não parecesse, já começava a mostrar-se e não podia perder a concentração. Comi, bebi e portei-me um bocado como um bicho do mato. Onze minutos depois, arranquei.

De Castelo de Vide até ao final

Mais calçada romana a descer. Força, no abdómen, nas coxas, poupa os tornozelos e corre João. E corri, sempre, quase sempre, praticamente sempre. Nas subidas abrandava e troteava, a direito e a descer corrida, acho que nunca corri tanto na vida. Do Marvão até Castelo de Vide nunca fui ultrapassado exceptuando pelos participantes da prova de 25 quilómetros que sairiam duas horas depois da minha passagem, e dali até ao final pretendia continuar assim,

Ultrapassei, de novo, três participantes que tinha ultrapassado na saída do Marvão e que por artes mágicas apareceram de novo à minha frente, ignorei, mantive o foco, e corri. Lá começaram a aparecer participantes da prova mais pequena. Os da frente passavam e não diziam nada, os menos da frente lá me gritavam um “força” quando passavam por mim.

Nesta zona, embora o terreno continuasse maioritariamente agrícola havia público a apoiar, amigas e amigos da prova dos 60km também, e voluntários (omnipresentes aliás em todo o percurso) e pizza para comer, e mais coca-cola (da verdadeira). Praticamente não parei nos abastecimentos nessa parte, excepto para colocar água nos bidões, estava dentro do meu tempo e dos meus objectivos mas à beira de derrapar num deles, e não queria “morrer na praia”, especialmente porque as provas são sempre um bocadinho de nada mais compridas do que é anunciado, como foi o caso.

A uns três quilómetros da chegada, aparece “vindo do nada” um participante dos 100 quilómetros, que não tinha visto ainda naquelas horas todas em que fui a ultrapassar outros participantes e que de repente passa por mim como uma bala. Estranhei mas continuei, aquilo era uma corrida e isso faz parte, ser ultrapassado, é uma corrida, não é um pic-nic no campo. Chegou uma subida, não lhe dei hipótese. Pensei em todas as vezes que já tinha corrido contra o Elevador da Glória e ganho, inspirei-me nisso e arranquei ainda mais depressa, nunca mais o vi a não ser depois da meta.

A chegada

Entrada no Estádio. Os AUR a puxar por mim, chamando-me pelo nome, todos os outros “anónimos” a aplaudir. Uma volta, quase 400 metros a 5’40” ao fim de 104 quilómetros a correr. Cruzei a meta com 19:57:57 de prova, dois minutos e três segundos abaixo do que tinha definido como meta para mim próprio

Os objectivos que tinha definidos, aliás, eram claros (não necessariamente simples) e foram todos cumpridos:

  • Chegar ao final de dia;
  • Chegar ao final antes das 20h de prova;
  • Chegar com menos do dobro do tempo do primeiro;
  • Fazer uma cadência média final inferior a 12 minutos por quilómetro;
  • Comer um Nestum durante a prova;

Cheguei contente, claro está, sem falsas modéstias nos últimos 40 quilómetros fui sempre a ultrapassar participantes da prova dos 100 quilómetros, e nem um me ultrapassou. Cheguei ao fim cansado, com os pés inteiro, e fresco e pronto para mais se houvessem.

Medalha de cortiça
A medalha, de cortiça

Liguei à Elsa, vi e respondi às mensagens que me tinham enviado e o telefone “pifou”.  Fui ao carro, tirei a parte de cima da roupa e vesti uma nova, levei o saco do material de banho e fui para a chegada esperar as companheiras de viagem. Chegou a Marina e depois a Emília, fortíssimas cada uma à sua maneira e por fim a Paula, de Bem com o Universo, claro está.

A despedida

Banhos tomados, comida leve no abastecimento e arranque para Lisboa, de coração cheio e cabeça “a mil”. A viagem, um misto de conversa com silêncio, ainda estava a aterrar, ainda estou. Fechei um pouco os olhos, passei pelas brasas sem descansar na realidade, pois ainda estava na Serra mas felizmente cheguei, antes do pôr-do-sol.

One comment

  1. Alexandre Duarte

    Depois de fazer as edições de 2013, 2014 e 2015, fica um grande sentimento de inveja ao visualizar nas tuas palavras locais que tenho e terei na memória, tão forte ficaram lá gravados nessas minhas participações.
    Em desacordo com o formato deste ano (partida conjunta dos 100 e dos 60) este ano faltei, mas sinceramente acho que não vou aguentar outro ano sem voltar a Portalegre e passar por esses locais que descreves neste teu texto.
    Parabéns pelo relato e pela tua aventura.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *